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04 junho 2014

Da ação e da reflexão

John Wayne em Rastros de ódio (The seachers), de John Ford
Carlos Heitor Cony, em artigo recente na Folha de S.Paulo, escreveu sobre a literatura de ação e a literatura de reflexão, e citou Glauber Rocha, que disse certa ocasião que a obra de José de Alencar é um rio caudaloso enquanto a de Machado de Assis uma torneira que pinga. Queria o realizador de Deus e o diabo na terra do sol dizer que nos livros de Alencar a ação prepondera em detrimento da reflexão enquanto nos de Machado é esta que determina a sua fruição. O mesmo poderia ser aplicado ao cinema.

O que se convencionou chamar erroneamente de cinema de arte não passa, na verdade, de uma falácia. O cinema de arte não existe e, inclusive, a expressão foi dada pelos exibidores (que são comerciantes) para designar, na década de 50, os filmes de tomadas demoradas, sem ação, quando da explosão no mercado das obras de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Roberto Rossellini, entre tantos outros. Os exibidores é que denominaram estes de filmes de arte porque filmes que não tinham ainda muito público e o mercado era restrito. Queriam eles dizer, na verdade, se tivessem mais noção da arte do filme, que os filmes de arte se caracterizavam pela reflexão em detrimento da ação.

O fato é que não existe, a rigor, cinema de arte. O filme pode ser excelente seja ele de ação ou de reflexão. Sobre produzir um monte de lixo, a indústria cultural de Hollywood também realiza grandes filmes, como, por exemplo, e filmes do ano em curso, Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, Onde os fracos não têm vez, dos Irmãos Coen. E os primorosos filmes de Clint Eastwood, Martin Scorsese, Sidney Lumet, entre outros tantos, não são oriundos da indústria? Se vingar a expressão cinema de arte como a significação do verdadeiro e bom cinema, filmes que são obras-primas como Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, por serem de ação, estariam fora dela. O que seria um absurdo e uma patologia mental.

O que determina o valor de uma obra cinematográfica é a maneira pela qual o realizador articula os elementos da  sua linguagem. Não importa se a articula em função da ação ou da reflexão. O que importa, na verdade, é o talento, o engenho e a arte. Também na literatura o que determina o valor literário de um livro é a maneira pela qual o escritor articula a sintaxe da língua. A ação pela ação (e também a reflexão pela reflexão), se não estiver apoiada numa escrita bem articulada, nada vale.

A confusão, porém, ainda é muito grande. A maioria dos pseudo-cinéfilos que toma conta das salas alternativas da cidade somente considera filmes válidos aqueles voltados para a reflexão. Mas se a reflexão não tiver aporte numa expressão estilística elevada não tem valor e, muitas vezes, é veículo para a aporrinhação do espectador. Neste caso, muito mais vale um filme de ação bem articulado do que um de reflexão de pouca polivalência no estilo.

Um belo dia, deparei-me com um impertinente pseudo-cinéfilo, desses que gostam mais de ficar na sala de espera para ser visto do que no interior da sala exibidora, e ele ficou admirado quando manifestei minha admiração pelos filmes de Clint Eastwood. "Mas não é aquele cowboy italiano que depois virou o perseguidor implacável?"

Existem, por outro lado, cineastas que a priori pensam fazer cinema de arte e, na verdade, seus filmes são estímulos fortíssimos à sonolência. O verdadeiro cineasta faz seu filme de acordo com a sua necessidade de expressão. Se vai conseguir um bom mercado exibidor ou ficar restrito às salas alternativas, isto, outra história.

Howard Hawks, brilhante realizador americano, fez um filme que mistura ação e reflexão numa solução de gênio em Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), com John Wayne, Dean Martin, Angie Dickison. Western clássico, a ação de Rio Bravo, tirante poucos momentos de ação, transcorre quase toda dentro de uma pequena sala da delegacia ou no interior de um hotel das circunvizinhanças. A reflexão, a análise do comportamento dos personagens, e os diálogos são mais importantes do que a ação. Em outro filme desse genial diretor, Hatari!, a sua maior parte está concentrada na espera da caça e não nesta, quando se tem a ação. Hatari!, filmado in loco, na África, é sobre um grupo de caçadores de nacionalidades diferentes que está à procura de animais selvagens para os levar para os zoológicos de seus países. Mas Hawks concentra todo o filme nos momentos fracos, nos momentos de pausa, nos momentos em que os personagens estão à espera da caçada. Uma característica de Hawks, um realizador que se dividiu entre os westerns e as comédias com admirável talento (inexistente no cinema contemporâneo).

O cinema de arte, portanto, é uma falácia e uma grande mentira.



01 junho 2014

A vida íntima de Sherlock Holmes

Pouco apreciado, porque, quando lançado em sua época, e retirado de cartaz, nunca mais exibido, A vida íntima de Sherlock Holmes é um Wilder em plena sensibilidade de seu humor e de seu cinema com um acento hitchcockiano que o faz ainda mais saboroso. Trata-se também do primeiro filme que Wilder (vienense radicado no cinema americano) realiza na Inglaterra (os interiores nos estúdios Pinewood) e Escócia (exteriores em Inverness). Produzido em 1970, com roteiro do inseparável I. A. L. Diamond, baseado nos personagens de Sir Conan Doyle, A vida íntima de Sherlock Holmes, sobre ser um espetáculo de grande finura, humor, e observação de comportamentos, é uma obra que se incorpora a uma filmografia quase única da história do cinema como mais uma variante de sua verve versátil e amplitude temática. A influência de Hitchcock se faz notável, mas influência benéfica, mais que soma do que diminui, como acentua Paulo Perdigão, o grande crítico, em comentário que posto abaixo.

Inativo, ocioso, Sherlock Holmes (interpretado por Robert Stephens) passa o tempo a tomar cocaína, apesar dos reclamos de seu biógrafo e amigo Dr. Watson (Colin Brakely). Aceitando o convite para assistir ao balé russo, Holmes é levado à presença da primeira-bailarina, Petrova (Tamara Toumanova), que, a desejar um filho genial, escolhe Holmes como o pai ideal. Polidamente, como é do seu feitio, o detetive recusa, a alegar ser um homossexual (é audacioso, para a época, a insinuação desta condição), declaração que deixa atônito o Dr. Watson totalmente desconfiado de sua misoginia. Dias depois, uma jovem, Gabrielle (a insinuante Geneviève Page), que tentara o suicídio no Tâmisa, é levada à residência de Holmes (rua Baker, 221-B). Ela viera da Bélgica para descobrir o paradeiro do marido, um engenheiro. O fleumático private eye segue uma pista, apesar das advertências em sentido contrário de seu irmão, Mycroff (interpretado pelo emblemático Christopher Lee).

Em Inverness, na Escócia, descobre Holmes a existência de um estranho submersível testado pelo governo, e que tem a forma do lendário monstro marinho Long Ness. Mycroff, que trabalha no projeto, revela a Holmes que Gabrielle é, na verdade, uma espiã alemã. Frustrado, o detetive volta à sua Londres enquanto Gabrielle é presa. Mais tarde, Holmes vem a saber, transtornado, que a moça fora executada. A solução, e solução wilderiana, diga-se de passagem, será voltar à cocaína.

The private life of Sherlock Holmes é vigésimo - segundo filme da carreira do diretor e o nono em parceria com o roteirista Diamond (trabalham juntos desde Amor na tarde/Love in the afternoon, 1956). Produzido com sete milhões de dólares (uma mixaria em relação aos tempos faraônicos da Hollywood atual), é o centésimo vigésimo filme a apresentar a figura do detetive criado por Conan Doyle e aqui abordado livremente.

Como homenagem a este filme pouco apreciado de Billy Wilder e, também, como homenagem ao grande crítico que foi Paulo Perdigão, publico aqui uma crítica de sua lavra publicada no antigo Guia de Filmes do INC (Instituto Nacional de Cinema, que também publicava a revista Filme/Cultura. Nos bons tempos da crítica cinematográfica. Perdigão morreu em janeiro de 2007, o que se constituiu numa perda enorme para os escritos sobre a arte do filme. Tinha Perdigão como o seu melhor filme Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens. Chegou a ir, sob os auspícios da Filme/Cultura, entrevistar Stevens, que, a princípio arredio, com o desenrolar da conversa, assombrou-se com o conhecimento de Perdigão sobre Shane. No final da entrevista, disse que Perdigão conhecia mais o filme do que ele, seu diretor. Eis seu comentário:

"Elementar, meu caro Wilder. É o que o roteirista Diamond deve ter comentado com o diretor Billy Wilder quando ambos resolveram decifrar – sem consulta à fonte Conan Doyle – um mistério chamado A vida íntima de Sherlock Holmes. As pistas deixadas pelo fiel Dr. Watson dentro de uma caixa top secret eram dignas da imaginação, do faro e da irreverência do mais célebre detetive de todas as épocas; além da clássica indumentária sherlockiana (o boné de camurça, o cachimbo, a écharpe, a lente de aumento), já estavam os relatos que Watson não teve coragem de publicar em The Strand Magazine por serem indiscretos demais. Quatro episódios reveladores da personalidade de Sherlock e que, como diz Wilder com seu conhecido cinismo, “também refletem a imagem de certa Inglaterra”.

Antes da atual aventura, Sherlock esteve 127 vezes na tela – numa delas (alemã de 1963) interpretado por Christopher Lee, que aqui faz o irmão de Holmes, Mycroft. Mas só agora, sob os traços do shakespeariano Robert Stephens, ele foi examinado por um cineasta à altura de sua sofisticação diabólica. Wilder identifica-se com Holmes e evidentemente o admira: “Ele é um dos maiores personagens da literatura, comparável a Hamlet e Cyrano de Bergerac”. Por isso, as inconfidências sobre a intimidade do herói não atingem o plano da sátira devastadora; contém-se respeitosamente na fina ironia, numa reconstituição muito fleumática e astuciosa do mundo em que viveu Holmes, a velha Inglaterra vitoriana com seus personagens nobres, céticos e calculistas. Na carreira de Wilder, dominado por tantas provocações indômitas (A montagem dos sete abutres, Quanto mais quente melhor, Beija-me idiota), este filme ocupa posição mais discreta, porém, em quase tudo refletindo a sofisticação que o diretor guardou de suas antigas ligações com o mestre Lubitsch, como roteirista de A oitava esposa do Barba Azul e Ninotchka.

The private life of Sherlock Holmes é também como uma inesperada homenagem que o cinema presta a Hitchcock. O estilo e o tom da narrativa têm o mesmo sabor de velhos thrillers ingleses de Hitch e muitas imagens – a velha paralítica na loja deserta, os monges misteriosos do trem, os anões do cemitério – chegam a ser acintosamente hitchcockianas. Há, inclusive, na cena das ovelhas, uma citação de Os 39 degraus e, na seqüência do balé russo, a repetição de uma passagem idêntica de Cortina rasgada, com a mesma e sinistra Tâmara Toumanova. Até quando se diverte com a velha Inglaterra (a Rainha Vitória, de metro e meio de altura, protesta contra a falta de cortesia na guerra e manda destruir o submarino porque “não se pode atacar o inimigo sem aviso prévio”). Billy Wilder parece estar querendo fazer de A vida íntima de Sherlock Holmes o filme mais hitchcockiano que o Hitchcock da fase inglesa não dirigiu, conclui o grande Perdigão.